sábado, 29 de setembro de 2012

Fisiopatologia das doenças falciformes



A anemia falciforme, doença genética que levou ao conceito de “doença molecular” (14), é caracterizada por anemia hemolítica crônica e fenômenos vaso exclusivos que levam a crises dolorosas agudas e à lesão tecidual e orgânica crônica e progressiva.
É causada pela substituição de adenina por timina (GAG->GTG), codificando valina ao invés de ácido glutâmico, na posição 6 da cadeia da -globina, com produção de hemoglobina S (HbS). Esta pequena modificação estrutural é responsável por profundas alterações nas propriedades físico-químicas da molécula da hemoglobina no estado desoxigenado. Estas alterações culminam com um evento conhecido como falcização, que é a mudança da forma normal da hemácia para a forma de foice, resultando em alterações da reologia dos
glóbulos vermelhos e da membrana eritrocitária.

O processo primário deste evento é a polimerização ou gelificação da desoxiHbS. Sob desoxigenação, devido à presença da valina na posição 6, estabelecem-se contatos intermoleculares que seriam impossíveis na hemoglobina normal. Estes contatos dão origem a um pequeno agregado de hemoglobina polimerizada. A polimerização progride, com adição de moléculas sucessivas de HbS à medida que a porcentagem de saturação de oxigênio da hemoglobina diminui. Os agregados maiores se alinham em fibras paralelas, formando um
gel de cristais líquidos chamados tactóides (1,2).

A falcização dos eritrócitos ocorre pela polimerização reversível da HbS dentro da célula, sob condições de desoxigenação. Sob completa desoxigenação formam-se células em forma de foice, clássicas da anemia falciforme. Sob desoxigenação parcial podem existir pequenas quantidades de polímeros sem anormalidades morfológicas visíveis. A quantidade de polímeros aumenta progressivamente com a desoxigenação, até que as células vermelhas assumem a forma de foice (7). 
Este fenômeno é reversível com a oxigenação, desde que a membrana da célula não esteja definitivamente alterada. Quando isto ocorre formam-se os eritrócitos irreversivelmente falcizados, que permanecem deformados independentemente do estado da HbS intracelular (5).

As propriedades reológicas das células falciformes são determinadas pela extensão da polimerização da HbS (9,12). Os polímeros, por serem viscosos, diminuem a deformabilidade dos eritrócitos, diminuindo o seu trânsito através da microcirculação.
Vários fatores influenciam o grau de polimerização da desoxiHbS nas células vermelhas: a porcentagem de HbS intracelular, o grau de desidratação celular, a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM), o tempo de trânsito dos glóbulos vermelhos na microcirculação, a composição das hemoglobinas dentro das células (% de HbS e % de Hb não-S), o pH, entre outros (1,2,13).

Em geral, quanto maior a quantidade de HbS, mais grave é a doença. Os pacientes homozigóticos para HbS têm quadro clínico, em geral, mais grave do que os pacientes com hemoglobinopatia SC, SD, SOarab, etc. A associação com persistência hereditária de hemoglobina fetal confere melhor prognóstico à doença.

A desidratação celular aumenta a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM), facilitando a falcização, por aumentar a possibilidade de contato entre as moléculas de HbS. A associação entre HbS e talassemia, que tende a reduzir a CHCM, pode associar-se a quadros clínicos menos graves, em alguns casos.
O espaço de tempo durante o qual a HbS permanece desoxigenada também é importante. A polimerização aumenta com qualquer aumento do tempo de trânsito dos eritrócitos através da microcirculação(1,2,13). Assim, existe maior tendência à falcização nos locais do organismo onde a circulação, através dos sinusóides, é lenta, como acontece por exemplo no baço.

A presença de outras hemoglobinas dentro da célula influencia a falcização porque exerce um efeito de diluição, diminuindo a oportunidade de contato entre as moléculas de desoxiHbS. A influência sobre a polimerização da HbS varia com o tipo de hemoglobina não-S que está presente dentro da célula (13). A hemoglobina que menos participa do polímero é a hemoglobina fetal. Quanto maior é a porcentagem de hemoglobina fetal, menor é a polimerização da HbS. Clinicamente, níveis elevados de hemoglobina fetal associam-se à menor gravidade da doença.


A acidose, por sua vez, diminui a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio, aumentando a polimerização, através do aumento da quantidade de desoxiHbS dentro da célula.
Além do distúrbio na deformabilidade celular, que altera as propriedades de fluxo das células vermelhas na microcirculação, a polimerização da HbS causa também alterações na membrana celular. Após repetidos episódios de falcização e desfalcização, as células falciformes tendem a perder K+ e água, tornando-se desidratadas. Isto resulta em aumento da concentração da hemoglobina corpuscular média (CHCM) com provável aumento na
polimerização. A membrana da célula vermelha torna-se alterada, assumindo uma conformação rígida e anormal, constituindo as células irreversívelmente
falcizadas (5).

Como resultado da polimerização da HbS, do aumento da CHCM e das alterações de membrana, os eritrócitos são sequestrados e prematuramente destruídos pelo sistema monocítico fagocitário. A destruição aumentada de eritrócitos, levando à anemia hemolítica crônica, é uma manifestação clínica importante das doenças falciformes. A ausência de anemia ao nascimento e seu início, acompanhando a queda de hemoglobina fetal pós-natal e a síntese de HbS, indicam que a falcização é necessária para a indução das anormalidades
celulares responsáveis pela destruição dos glóbulos vermelhos. A acentuada variação nos graus de anemia entre os pacientes e, às vezes no mesmo paciente ao longo do tempo, sugere que múltiplos mecanismos estão envolvidos na remoção das hemácias da circulação.

A redução dos valores da hemoglobina e do hematócrito, associada ao aumento do número de reticulócitos e à diminuição da vida média dos eritrócitos, são alterações presentes nas anemias hemolíticas e estão presentes nas doenças falciformes. Outras alterações laboratoriais indicativas de hemólise aumentada também ocorrem: aumento de bilirrubina indireta, aumento de desidrogenase lática e diminuição da haptoglobina.

A hemólise ocorre por destruição extravascular e intravascular dos eritrócitos. A contribuição precisa de cada mecanismo ainda não está bem estabelecida. O mecanismo dominante é a hemólise extravascular, que decorre do reconhecimento e fagocitose das células vermelhas que sofreram falcização e/ou lesão oxidação-induzida da membrana celular. A hemólise intravascular, estimada em um terço da hemólise total, provavelmente decorre da lise dos eritrócitos falciformes complemento-induzida e da fragmentação celular (3,6).

A falcização tem um papel fundamental na indução das anormalidades celulares responsáveis tanto pela hemólise intravascular quanto pela extravascular. Existe forte correlação entre a porcentagem de células irreversivelmente falcizadas, que constituem uma subpopulação de células densas, desidratadas e a taxa de hemólise (11). As evidências de que a população de células densas exibe níveis aumentados de imunoglobulinas ligadas à superfície, levando ao seu reconhecimento pelos monócitos e macrófagos e de que estas células são mais sensíveis à lise pelo complemento e fragmentação mecânica, dá suporte à hipótese, de que esta subpopulação de glóbulos vermelhos exerce um papel chave na hemólise da anemia falciforme (3,4,15) .

Estes são os eventos que constituem a base para o encurtamento da vida média dos eritrócitos, com conseqüente anemia hemolítica, e para a oclusão da microcirculação com isquemia e eventual infarto tecidual, que resulta em lesão orgânica crônica e em crises dolorosas agudas, manifestações mais típicas das doenças falciformes.



Bibliografia:

1- EATON WA, HOFRICHTER J. Hemoglobin S gelation and sickle cell disease. Blood, v. 70, p. 1245-1266, 1987.

2- EATON WA, HOFRICHTER J. Sickle cell hemoglobin polimerization. Advances in Protein Chemistry, v. 40, p. 263-269, 1990.

3- GALILI U, CLARK MR, SHOEHT SB. Excessive binding of natural anti-alpha galactosyl immunoglobulin G to sickle cell erythrocytes may contribute to extravascular destruction. J Clin Invest, v.77, p. 27-33,1986.

4- GREEN GA. Autologous IgM, IgA and complement binding to sickle erythrocytes in vivo. Evidence for existence of dense sickle cells subsets. Blood, v. 82, p. 985-992, 1993.

5- HEBBEL RP. Beyond hemoglobin polimerization the red blood cell membrane and sickle disease pathophysiology. Blood, v.77, p. 214- 237, 1991.

6- HEBBEL RP, MILLER WJ. Phagocytosis of sickle erythrocytes: immunologic and oxidative determinants of hemolytic anemia. Blood , v. 64, p. 733-739, 1984.

7- HORIUCHI K, BALLAS SK, ASAKURA T. The effect of deoxygenation rate on the formation of irreversibly sickled cells. Blood, v. 71, p. 46-51, 1988.

8- INGRAM VM. A specific chemical difference between the globins of normal human and sickle-cell hemoglobin. Nature, v. 178, p. 792-794, 1956.

9- MACKIE LH, HOCHMUTH RM. The influence of oxygen tension, temperature and hemoglobin concentration on the rheologic properties of sickle erythrocytes. Blood, v. 76, p. 1246-1261, 1990.

10- MAROTTA CA, WILSON JT, FORGET BG, WEISSMAN SM. Human b-globin messenger RNA. J Biol Chem, v. 252, p. 5040-5051.

11. MCCURDY PR, SHERMAN AS. Irreversibly sickled cells and red cell survival in sickle cell anemia: a study with both DF32P and 51Cr. Amer J Med, v. 64, p. 253-260, 1978.

12- MOHANDAS N, EVANS E. Rheological and adherence properties of sickle cells. Potencial contribution to hematologic manifestations of the disease. Ann NY Acad Sci, v. 565, p. 327-337, 1989.

13- NOGUCHI CT. Polymerization in erythrocytes containing S and non-S hemoglobins. Biophys J, v. 45, p. 1154-1158, 1984.

14- PAULING L, ITANO HA, SINGER SL, WELLS IC. Sickle-cell anemia, a molecular disease. Science, v. 110, p. 543-548, 1949.

15- TEST ST, KLEMAN K, LUBIN B. Characterization of the complement sensitivity of density-fractionated sickle cells. Blood v. 78(suppl1), p. 202a, 1991.


fonte: Manul de diagnósticos e tratamentos de anemia Falciformes

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